sábado, 19 de dezembro de 2009

Lições de oftalmologia

- Qual é a principal causa de cegueira no mundo?

- Catarata?

- Não, Glaucoma. Catarata é no Brasil.

Com paciência e riqueza de detalhes, o médico residente Frederico Lírio dá uma aula de oftamologia para quatro "bandeirantes". Eles estão na Escola Orlyene, centro de Ivinhema, onde oito oftalmologistas examinam, das 8h às 16h, a população carente da cidade. Passam por lá, diariamente, entre 150 e 170 pessoas. Todas estiveram antes em um posto de saúde e já chegam com emcaminhamentos.

O atendimento é constante. Não para nem em domingos ensolarados, como o de hoje. Há apenas uma pausa, para o almoço, das 12h às 13h. O intervalo divide a jornada em dois turnos: manhã e tarde. A cada período, quatro ou seis estudantes de Medicina se revesam para aplicar questionários epidemiológicos. No final do turno, quando o movimento diminui, vem a parte mais legal: assistir à aula dos residentes do Hospital Central (HC) de São Paulo e mexer nos aparelhos.
Em uma folha sulfite, o oftalmologista detalha a estrutura do olho humano. Fala também da formação da imagem e dos problemas de visão relacionados a ela, como miopia e astigmatismo. Os estudantes são constantemente arguidos. É uma espécie de revisão dos conceitos aprendidos na faculdade. “Presbiopia é corrigida com lente positiva ou negativa?”, pergunta Lírio.

A parte teórica não dura mais que 15 minutos. Os estudantes vão logo conhecer os equipamentos de uma consulta oftalmológica. O primeiro deles é o Auto-refrator, que estima quantos graus o paciente "tem". Em seguida, os estudantes conhecem os curiosos aparelhos de Biomicroscopia e Fundoscopia. O primeiro analisa a parte anterior do olho (córnea, íris) e o segundo a parte de trás (retina, nervo ótico). Por último, eles conhecem o aparelho da Refração, que indica qual lente fica melhor no paciente. De funcionamento mais simples, ele é muitas vezes operado pelos próprios estudantes, sob supervisão dos residentes.

Os aprendizes demonstraram um interesse concentrado, embora muitos não tenham decidido ser oftalmologistas. “Eu gosto bastante de ficar aqui. Dá para aprender conhecimento específico que está faltando na faculdade”, comenta a estudante de Medicina da USP Fernanda Baeto.

Para Frederico Lírio, mesmo que a oftalmologia não seja a especialidade escolhida por seus pupilos, os ensinamentos da Bandeira podem ajudá-los nos dignósticos e encaminhamentos que farão. "Eles vão lidar com a oftalmologia de uma outra forma", diz.

De todo modo, a convivência aproxima os estudantes desse ramo da Medicina: "É uma maneira de chamar a atenção dos alunos para a nossa especialidade, que tem um caráter muito forte de inclusão social”, comenta Lírio.

Visita à Dona Clemência

Dona Clemência Maria de Jesus é uma senhora baiana com uma risada incansável, que por acaso do destino veio morar Ivinhema. Ao longo de sua vida passou por uma Guerra Mundial, duas ditaduras no Brasil, a redemocratização, o nascimento da internet, todos os acontecimentos que nesses últimos 90 anos nós chamamos de históricos. Mas a verdade é que a história de Dona Clemência tem seus próprios marcos.

Numa idade que já nem lembra mais saiu da sua cidade natal, Caculé, na Bahia, e foi com a família viver em São Paulo, em Presidente Venceslau. Quando casou, a vida por lá ficou difícil e ela decidiu vir para Ivinhema "quando ainda era só mato por aqui". Aqui teve parte de seus dez filhos e perdeu três deles.

A senhora descreve Ivinhema como o "melhor lugar que morou, porque é o que traz as melhores lembranças". Ela não fala do passado, nem da morte de seus filhos como alguém que carrega uma mágoa, e se define melhor do que ninguém "sofri muito, mas não adianta nada chorar, então, é melhor dar risada". E diz que sua força vem do fato de que trabalhou na terra a vida inteira.

Hoje de manhã, a casa de Dona Clemência recebeu uma visita
domiciliar da Bandeira. Há dois anos ela tem dificuldade para andar, porque sofreu uma queda; e a visita do projeto atende justamente quem tem dificuldade de se locomover.

Os visitantes foram o médico geriatra, as nutricionistas, a futura
dentista e os fisioterapeutas, além da equipe de comunicação, e, apesar de ser tanta gente Dona Clemência não pareceu se incomodar "a coisa que eu mais gosto na vida é conversa". Ouviu tudo atentamente, se esforçou nos exames, mas vai precisar de ajuda dos filhos e netos para lembrar de todas as recomendações.

Os fisioterapeutas e o médico ficaram surpresos com a força da baiana. "Ela não está doente, está apenas cansada", diz o médico, que fez alguns ajustes na medicação e sugeriu uma lavagem no ouvido para ver se a audição melhora.

As nutricionistas fizeram algumas sugestões para melhorar a alimentação, apenas com o leite D. Clemência mostrou resistência "não gosto muito de leite, não". A estudante de odontologia observou a boca e aconselhou D. Clemência a escovar os dentes "mas eu só tenho dois", disse a senhora fazendo todos rirem mais uma vez.

Seis meses em um dia

Para o estudante de Medicina Steeven Yeh, o Bandeira Científica “É um dos poucos lugares na Faculdade de Medicina em que aprendemos a encaminhar uma pessoa, em que vemos como outras áreas funcionam”. Uma dessas pessoas foi Cícera de Souza Reis. A ficha médica da babá, empregada doméstica, doceira e dona-de-casa, acabou coloridíssima, constando quatro selos diferentes, cada um indicando uma área pela qual passaria na Faculdade de Biologia da UEMS, onde foi atendida.

“O problema que ela tinha era excesso de peso e osteoartrose. O que eu fiz foi retirar a dor dela e encaminhar ela pras áreas em que eu não podia intervir”, conta a estudante de medicina Raquel Andrade, que a atendeu. A primeira área foi a Fisioterapia, que complementa o tratamento feito com os remédios. “Encaminhamos ela para dar continuidade à fisioterapia na UBS”, conta o fututo fisioterapeuta Paulo Mota. A Unidade Básica de Saúde que atua em Ivinhema é responsável pela continuidade de parte dos tratamentos dos bandeirantes.

Mota conta que não é comum estudantes acompanharem casos de outras áreas. “Na Bandeira, é diferente. Já acompanhei o tratamento da medicina só porque o caso é interessante. Temos proximidade com a área do outro”. A fisioterapia ainda fez com que Dona Cícera fosse encaminhada para mais uma especialidade, a dermatologia, devido a um olho de peixe que identificaram em seu pé.

A paciente já tinha passado por três áreas antes do final da tarde, quando foi atendida pela Nutrição. Depois de uma longa entrevista, a estudante Priscila Koritar foi apontando os problemas nos hábitos alimentares de Dona Cícera, que encarou a médica com surpresa quando ficou sabendo que o grupo do leite tem que ser consumido três vezes ao dia. Outro choque foi que deveria diminuir o consumo de óleo em sua casa para meia lata por mês – a família de Dona Cícera consome quatro latas mensalmente. “Eu como bem, não vou negar pra você não”, explicou com bom humor.

“Passar por quatro médicos, eu faria isso em seis meses. Eu fiz isso em um dia”, conta a paciente, que só saiu do atendimento para almoçar - quase uma rotina de bandeirante. Agora o desafio é fazer esse dia valer. “Vou mudando aos pouquinhos [a alimentação], já estou mudando”.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Social

Hoje é dia de integração entre os bandeirantes aqui em Ivinhema. Finalmente um descanso para as equipes.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Na salas de aula

A Escola Estadual Senador José Müller se transformou na central de atendimento da Odontologia da Bandeira deste ano. Junto aos estudantes de Nutrição a equipe de Odontologia recebe as crianças para um misto de ensino e atendimento.

É na Escola, também, que a Odonto - como é chamada por aqui - faz os moldes e as 20 próteses que são doadas às pessoas da cidade e passam a noite trabalhando para terminar a tempo. Até a Fonoaudiologia foi à Escola para ajudar os pacientes que receberão as próteses a se adaptarem melhor.
Abaixo ficam algumas fotos do atendimento às crianças:

O primeiro passo é preparar as dependências da Escola para receber os pequenos






"Bolinha, bolinha, bolinha! Trenzinho, trenzinho, trenzinho", gritam as crianças ao aprenderem os movimentos de escovação. Na sala de aula elas aprendem sobre a pirâmide alimentar e sobre a forma correta de escovar os dentes



Em seguida, é colocado um contraste na boca que destaca as placas e é feita a avaliação dos dentes





As crianças têm que colocar em prática o que aprenderam sobre a escovação e são assistidas de perto pelos futuros dentistas







Quem tem cárie vai para a sala de tratamento, quem não tem fica com as nutricionistas fazendo joguinhos para testar se aprendeu sobre a alimentação




Por fim, as crianças ganham um kit para a escovação e brinquedos com a equipe de Nutrição que faz brincadeiras antes de todo mundo ir embora





terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Quais são as cinco coisas mais legais da Bandeira Científica 2009?

Já passou das 23h e o pessoal ainda está organizando fichas, remédios, palestras e aparelhos estranhos para as atividades de amanhã. Estamos apenas no terceiro dos nove dias de Bandeira, mas muita coisa já aconteceu.

Fomos saber de alguns "bandeirantes" quais são os cinco aspectos mais legais (até agora) de participar de uma experiência como esta. Falamos com pessoas de diferentes áreas e cores de camiseta, isto é: quem veste camisa branca é da área médica (Nutrição, Psicologia, Odonto etc); os de camisa cinza são os que não pertecem à Saúde (ECA, Esalq, Poli, Design); todos os diretores da Bandeira, independente da área a que pertencem, vestem camiseta verde e quem já se formou (como todos da Oftalmologia) está sempre de azul. Estes são os chamados de discutidores - por fazer palestras e capacitação também. Há diversos professores entre eles.

Vamos às respostas:

Branco - coisas mais legais da Bandeira Científica para o estudante de Odontologia Lincoln Beringui

1) Visita domiciliar

2) Palestra com crianças sobre saúde bucal

3) Interação com outras áreas

"Aprendi muito com o pessoal da Medi, da Fisioterapia".

4) Restauração nas crianças.

"É legal poder ajudar as pessoas menos favorecidas. A gente se sente mais útil"

5) Aprender a se virar em um meio restrito

"Aqui, a gente não tem as mesmas instalações da faculdade. Então aprendemos a tratar as doenças com os recursos que temos no momento".

Cinza - coisas mais legais da Bandeira Científica para o estudante de Engenharia Bruno Fukasawa

1) Atividade com as crianças

2) As pessoas do Assentamento São Sebastião

3) A energia positiva do alojamento

4) As estrelas que não tem em São Paulo

5) A coleta seletiva, que está dando certo

Verde - coisas mais legais da Bandeira Científica para o estudante de Medicina Rodolpho Truffa

Para ele não existem os top five aspectos do projeto, mas um top one, que é a Bandeira como um todo. Todos os momentos, mesmo os mais duros e cansativos, seriam os responsáveis por esta experiência singular."Você passa a madrugada arrumando as fichas, mas depois dá risada", diz.
Mesmo assim, Truffa concordou em listar os aspectos mais bacanas da Bandeira. Voilà:

1) Ver as pessoas empenhadas em atender

2) Acompanhar as atividades das outras áreas que você não conhece

3) Conversar com os discutidores

4) Sentir-se bem tratado, abraçado pela cidade

5) O alojamento

"Isso aqui é um microcosmo, uma Babel. Tem gente de todo tipo. Você está aqui trabalhando, aí chega uma pessoa do blogue para te entrevistar, alguém da Engenharia oferecendo ajuda".

Azul - coisas mais legais da Bandeira Científica para as fisioterapeutas Marília Brezulle e Anice Passaro

1) Integração entre alunos e profissionais

2) Sensação de fazer a diferença com pequenas coisas

3) Aprendizado com alunos e pacientes

4) Discussão de casos com profissionais de outras áreas

5) Criatividade dos pacientes para se adaptar às dificuldades

"Teve dois que fizeram cadeiras de rodas com rodas de bicicletas, tem outro que fez uma barra paralela com um pedaço de árvore. Como eles sabem que as coisas demoram a chegar aqui, vão criando suas próprias adaptações", diz Marília.

"É bem diferente dos pacientes que estamos acostumados a atender em São Paulo", conta Anice, que está formada há 12 anos. "Nos centros urbanos, as pessoas costumam reclamar e esperar pelos recursos", diz.

Uma ajudinha na terra da goiaba

Goiabas são onipresentes em Ivinhema. Na entrada de nossa cantina, há diariamente uma caixa de alguns litros cheio de goiabas vermelhas para quem quiser pegar. Na cantina das escolas, idem. No mercado da cidade, a fruta colore as bancas. Nas sorveterias, ela é sempre uma opção de sabor - inclusive nas máquinas de sorvete italiano . O município é um dos principais produtores de goiaba, que nos recepciona onde quer que vamos.

Mas hoje foi diferente. Ao visitar o Núcleo de Artesanato Gleba Vitória, fomos recebidos não com a fruta, mas com uma goiabada cascão de altíssima qualidade. O sabor é suave. Adoça a boca sem excessos. A cor escarlate denota o muito tempo de fervura durante o preparo.

Em frascos de vidro, estão as geléias - de goiaba e de mamão também. O rótulo simples marca
uma ilustração da fruta e os dizeres "Doce de Goiaba". A compota é excepcional, mas não há uma marca relacionada ao produto. Não há embalagens que cativem o comprador nas feiras. É por isso que os estudantes de Design da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP) estiveram por lá hoje. "Seria legal criar uma embalagem de palha para a goiabada cascão", comenta o professor Cláudio Goya, que acompanhou o grupo.

O pessoal da Bandeira também deu uma olhada no artesanato produzido pelas quatro costureiras do núcleo. As almofadas e os edredons são feitos de algodão cru e ornados com patch works de fuxicos e florzinhas. Estão excepcionais, na avaliação dos futuros designers. "Muito criativo, bonito mesmo", comentam os estudantes. Elza Andreacci, a instrutora do local, confirma que os produtos têm tido "muita saída", inclusive em feiras do Rio de Janeiro. "O problema são as bolsas. Ainda não conseguimos vender muito", comenta.

Para contornar o problema, as garotas do Design dão sugestões: "Não precisa desse estofado no meio, porque a bolsa fica mais pesada e, se molha na praia, depois não seca. Vamos criar um modelo mais leve, que até dá para fazer mais rápido".

Tempo é, aliás, um dos principais problemas dos artesãos locais. É pouca gente para dar conta da demanda, que tem sido alta. "Eles ainda fazem manualmente coisas que poderiam ser feitas com máquinas, sem alterar o produto final", comenta o professor Goya. "Vamos indicar para eles o maquinário apropriapado, para amassar barro, cortar retalho. A
prefeitura já disse que vai comprar".

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Cinco décadas de Ivinhema

José Pereira das Vinhas, diretor adjunto da Escola Estadual Senador José Müller, conhece a história da cidade de Ivinhema como poucos, e viveu na pele as mudanças pelas quais a cidade passou nos últimos 44 anos.

Pereira mudou-se para a cidade junto com a família em 1965, aos 7 anos de idade. Seu pai, agricultor português, decidiu mudar com a família de Quatá, em São Paulo, para o Mato Grosso do Sul atraído pela expansão do café na região.

Os assentamentos na região de Ivinhema eram controlados pela Sociedade de Melhoramentos e Colonização, a Someco, que controlava a maior parte das terras e as vendia para imigrantes. "A cidade não era nem mesmo conhecida como Ivinhema, a maioria das pessoas chamava ela de Someco mesmo", lembra Pereira.

Mesmo tendo trabalhado na lavoura desde cedo, Pereira conseguiu se formar em Língua Portuguesa. Por quatro anos, ele viajava 5 horas toda semana até Presidente Prudente, onde ficava sua faculdade. Depois de formado, trabalhou numa escola rural, onde pôde ver de perto uma nova onda migratória na região. A modernização da agricultura, que vinha desde a década de 80, fez com que grande parte da força de trabalho se tornasse desnecessária na lavoura, levando famílias a se mudarem para as cidades. Como resultado, a escola rural em que dava aula fechou e ele passou para a EE José Müller, também na cidade.

Pereira fala de outras migrações mais recentes, como a que aconteceu com a abertura de um frigorífico da empresa Independência, em Nova Andradina, que emprega diretamente 3,2 mil pessoas.

Agora, o professor observa uma nova onda de imigração, bem diferente das que testemunhou nas últimas 5 décadas. Os imigrantes, dessa vez, não vêm com suas famílias. Diferente dos grupos esparsos de colonos que fincaram suas raízes pelo estado vindo de todos os cantos do Brasil, esses novos exploradores vêm em uma grande onda, cerca de 240 pessoas, e se concentram num só local. São os estudantes do projeto Bandeira Científica, iniciativa de várias Unidades da USP, que vêm colocar em prática o que aprendem na longínqua São Paulo para prestar atendimento especializado em várias áreas, da saúde à engenharia.

Os alunos de Pereira, de Ensino Fundamental, foram alguns dos atendidos pelos bandeirantes das faculdades de Nutrição e Odontologia. Em atividade integrada, a nutrição discutiu a importância da boa alimentação para a saúde dos dentes, enquanto a odontologia ensinou as técnicas de escovação e prestando atendimento odontológico para os alunos.

Estávamos sentados num banco da escola , depois de acompanhar os trabalhos da nutrição e odontologia quando Pereira puxou conversa e acabou contado um pouco sobre a sua história que se mistura com a de Ivinhema.

domingo, 13 de dezembro de 2009

O Assentamento São Sebastião

O Assentamento São Sebastião fica a uma hora da Escola Agrícola, onde estamos hospedados. Passamos a tarde lá acompanhando os alunos da Escola Politécnica (Poli), que foram apresentar uma palestra sobre tratamento de água para os moradores.

Dona Lourdes Alves da Silva, presidente da Associação dos Trabalhadores Rurais do Assentamento São Sebastião, nos esperava na tecelaria. Enquanto aguardávamos os moradores, conversamos um pouco com ela sobre a história daquele lugar.
A área do Assentamento foi ocupada por várias famílias há muitos anos, mas a família de Dona Lourdes ainda não estava entre elas. Ela chegou depois, mas logo se engajou na luta pela oficialização das propriedades. Em 2000, os “ocupantes” ganharam oficialmente o direito de propriedade sobre aquelas terras. No total, 100 famílias foram abrigadas nos lotes demarcados pela justiça.

Hoje, muitas delas já venderam suas propriedades, a presidente explica que é difícil manter uma lavoura apenas com a família, principalmente se os filhos vão fazer suas vidas longe dali e os pais já estão cansados pelo trabalho pesado com a terra.

O assunto que os alunos da Poli foram tratar ali toca diretamente o cotidiano dos moradores. Eles ainda continuam na luta, mas agora o foco é a água. Há apenas um poço artesiano para abastecer as 100 propriedades do São Sebastião, o que leva a vários problemas para a irrigação das plantações e também para a qualidade da água.

Especialmente nessa época do ano, quando o poço seca, a água fica ainda mais suja, pois os moradores cavam o poço para alcançarem a água. Na oficina da Poli, eles aprenderam como reverter esse problema com várias técnicas para filtrar e limpar a água.

Amanhã temos um longo dia pela frente e já são 2 horas da madrugada. Daqui da sala de internet não ouvimos mais os violões e o pessoal em roda cantando, sinal de que está tarde.

Sangue eslavo

A voz fraca, pronunciada pelos lábios flácidos, deixa perceber um leve sotaque estrangeiro. Os dois erres são sempre fortes, como os dos italianos, mas a origem de Estephano Estaianov está longe de ser latina. O pai veio da Bulgária, junto com o avô, e conheceu em "em algum lugar de São Paulo" uma polonesa com quem se casou "no ano 26", lembra Estaianov, exclamando seu orgulho com as rugas da testa clara e manchada pelo tempo.

Há quase duas décadas, depois de plantar café no interior do Paraná (onde nasceram seus cinco filhos) por outros anos 40, ele veio tentar a sorte em Ivinhema. "Trabalhava de chinelo mesmo, com o veneno [da lavoura] nos pés. Às vezes até arrancava a camisa por causa do calor", diz. Foi surprendido por cobras e outros animais peçonhentos, mas nunca picado. Mudou de cultura, plantou mandioca e goiaba também, "qualquer coisa que aparecesse".

As geadas do final dos anos 70 desestimularam muitos plantadores de café da região de Ivinhema e a lavoura foi se diversificando. O ritmo de trabalho de Estaianov se manteve. Só deixou o campo para morar com o filho e a nora quando a saúde fraquejou. Há alguns anos, ele se submete com frequência a exames de todos os tipos, cujos resultados armazena com organização em um envelope branco.

Hoje, oito meses depois de ter parado de caminhar por conta de um problema na perna, Estephano Estaianov visitou o atendimento médico da Bandeira Científica montado na creche Aurelina Nery. Em sua cadeira de rodas, esperou com bom humor pela sua vez de fazer triagem e de responder ao questionário epidemiológico. "Quem sabe a fisioterapia não ajuda", comentou ainda na fila. Como é diabético, Estaianov também fez um exame de sangue, cujo resultado soube na hora.


Depois de alguns minutos, havia passado por todas as etapas do atendimento. Só teve que pular a antropometria, devido a sua impossibilidade de ficar em pé. Mas ele se prontificou a informar seu peso e a altura registrada em sua última medição - que aconteceu na época em que fez Tiro de Guerra.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Bandeira Cietífica rumo à Ivinhema

Em 2009, a cidade escolhida para sediar a Bandeira Científica foi Ivinhema, no Mato Grosso do Sul. O nome da cidade significa “terra há muito desejada” ou “terra prometida”, bem propícia para uma região povoada tardiamente, por paulistas e sul rio-grandenses.

A cidade é bem fria de noite. Ainda que, ao sair de São Paulo já estivéssemos debaixo de uma garoa, o tempo aqui parece firme, com um céu muito estrelado.

Nossa viagem começou há quase 24 horas, quando quatro ônibus e um micro ônibus levando quase 230 alunos e professores para o sudeste do Mato Grosso do Sul saíram da Faculdade de Medicina.

De início, fomos surpreendidos pelo motor, que parecia não querer mais funcionar, e logo na primeira hora de viagem a expedição parou para esperar o mecânico. Apesar do longo contratempo, seguimos caminho pela Rodovia Castelo Branco. Parada para almoçar e depois todos com sono, com o tempo passando sem ser percebido, percorremos a estrada sob chuva, sem perceber o pôr do sol... Pelas 23 horas chegávamos ao nosso destino.

Fomos recebidos por um comboio de carros e rojões anunciando nossa chegada, organizados pela prefeitura. Apesar dos estouros, a população local parecia pouco saber da pequena caravana de ônibus que se aproximava.

Agora, às cinco horas da manhã, terminamos de organizar caixas, remédios, pessoas. Todos cansados devem estar indo em busca de pelo menos umas três horas de sono antes do primeiro dia de trabalho.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Em um dos fundos do Brasil

Relato de Viagem




Origens
Itaobim, Vale do Jequitinhonha. A cidade de vinte mil habitantes, cujo nome tupi quer dizer pedra verde, tem origem indígena e um passado com riqueza de esmeraldas - o que pode explicar a invasão branca. João Pereira, prefeito eleito ano passado, conta que a povoação ocidental de todo o Vale tem origem no fim da Guerra do Paraguai, quando as terras foram dadas em presente aos combatentes.
Não poderiam ser as já inexistentes esmeraldas motivo da visita de pouco mais de duzentas pessoas vindas da Universidade de São Paulo – 1215 km ao sul. Nem, por mais bonito que seja o artesanato local, outra herança indígena segundo alguns governantes. Em meio ao choque cultural, diversas atividades ligadas à saúde foram feitas por lá. O projeto de extensão universitária chamado Bandeira Científica há dez anos realiza expedições similares, cada ano para uma cidade de baixo IDH do Brasil. Os alunos podem, dizem assim, conhecer melhor o país onde trabalharão, além de já durante a graduação (pós ou residência para os médicos) dar o retorno à sociedade, como faculdade pública de que são parte.
Fim dos dias passados juntos - uma dezena deles - cada lado fica ou vai embora com algo, depois de intensa competição para decidir qual grupo foi o mais beneficiado pelo encontro. Os universitário envolvidos suprem demanda considerável de especialidades profissionais que são difíceis e disputadas em cidades de pequeno porte, e longe dos centros profissionalizantes. Por exemplo, oftalmologia, segundo a secretária de saúde Maflávia Guerreiro, os residentes da especialidade adiantam o trabalho equivalente a dois anos de visitas semanas do profissional contratado pela prefeitura, no programa de consórcio de saúde compartilhado por prefeituras vizinhas.

O povo oriundo de São Paulo, em contrapartida, cobra dos atendidos e conhecidos mineiros, o exemplo de brasilidade, a vivência de aprendizagem. Na volta, pensamentos ocupados por montes de nomes, sorrisos, doenças, trejeitos, novos conhecidos cujos contornos já vão ganhando coloração esbranquiçada. E considerável parte de uma cidade continua exatamente onde estava duas semanas antes, na beira da BR-111. E as esculturas que representam mangas gigantes continuam avisando os interessados ou não, transeuntes da rodovia, que ali é a terra da manga.

Retratos



“Meu nome é Maria Rosa, e queria dizer que eu estou na luta”, finalizou nos termos compartilhados pelos outros integrantes do círculo improvisado, com toda a convicção que teria uma senhora mãe na roça, lavradora de pele bem conhecida do sol. Conta que teve o tempo dividido. Nasceu e criou seus filhos na zona rural, por isso, dentre as figuras espalhadas no chão por uma dupla da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, escolheu um recorte de revista que mostrava folhas de uma erva. “Minha mãe e minha avó plantavam espécies medicamentosas. Essa luz batendo nas folhas é o nascer do sol, o que também me lembra da roça, pois levantávamos cedo para trabalhar”. Já Helena, uma das poucas que militavam antes de chegarem na fazenda, escolheu uma figura que representava sua liberdade: “peguei essa foto por que estou livre e sozinha, como a moça dessa foto [modelo em posição de liberdade, na praia]. Aonde eu chego eu faço minha família, essa agora é a minha.

Segunda feira, oito horas da manhã, dezembro, assentamento Bela Vista, o primeiro em Itaobim. A apresentação das senhoras fazia parte de uma dinâmica com figuras, em que cada adulto da comunidade elegia uma ou duas ilustrações e as relacionava com a própria vida, falando de algum sonho. O dela era ter uma horta de remédios. Não conhece muitas ervas, mas tem certeza que com a ajuda de um técnico a comunidade poderá desfrutar de uma, assim como sua mãe e sua avó fizeram. Parecia que todos os presentes tinham relação de gerações com a terra. “Meu pai foi criado na roça, me criou, e agora crio meus filhos. Com essa figura (o recorte mostrava lavradores) queria que meus filhos entendessem que essa é a vida certa para se ter”.

A preocupação com os jovens – faixa etária mais abundante em Itaobim - também é assunto corrente na parte urbana, onde estão 85% da população. “Eles saem do ensino médio e não há emprego, não há faculdade, então não há opção para eles, por isso ficam à toa”, explica dona Isabel, que ainda criança veio para cá. Ela acompanhava os netos Scalety e Igor ao atendimento médico em um dos postos da Bandeira, pois a mãe estava trabalhando. Sua aposentadoria mal dá para as despesas, e é esse um dos motivos por que não estimula sonhos distantes dos netos, “Scalety quer ser policial, mas não tem como, as coisas são difíceis”.

A origem da violência que afeta a vida dos moradores, é sempre apontada pela presença das rodovias que cruzam a cidade – BR-111, 367 -, de forma curiosamente clara para os locais. O que, a princípio, beneficiaria comércio e indústria pela praticidade, também atraiu rotas de tráfico, em conseqüência a violência de disputas de gangues. E a presença de diversas dessas, dividiu a já pequena cidade em zonas de influência e controle, “os jovens envolvidos não tem mobilidade de uma escola pra outra dependendo da localização do bairro, tem tudo a ver com o tráfico”, aponta a secretária adjunta de educação do município, Darling Santos.

A carência local transformou a BR-111, principal acesso à cidade, em ponto de prostituição, agravando ainda mais o quadro, com adição de freqüentes casos de exploração infantil. “Isso tem diminuído por causa dos projetos iniciados”, diz ainda Darling se referindo ao projeto de coalizão – baseado em denúncias anônimas - que une professores da rede pública, o setor social, a equipe do Bolsa Família e o Pair (programa de ações integradas e referenciais de enfrentamento à violência sexual infanto-juvenil). A ambição é que o modelo seja exportado para municípios próximos que sofrem com o mesmo tipo de problema.

A maioria formada pelos menores


Itaobim é uma cidade de jovens. Os problemas enfrentados pelos vinte mil habitantes da chamada terra da manga podem ser superados pelo potencial – atualmente não bem aproveitado – de utilizar essa força guardada para reverter seus futuros. É nisso que acreditam os jovens da classe conscientizada, como os freqüentadores da Casa da Juventude, ONG cujo enorme galpão alimenta todos os dias 600 crianças, além de fornecer cursos, aulas e grupos de todos os assuntos que chegarem ate lá. De dança a cooperativa de lixo reciclável passando por cinema em equipada ilha de edição de vídeo. Parte de um projeto internacional da Igreja Católica, o complexo é localizado em um dos bairros mais carentes da cidade. Lugar também onde é mais evidente a divisão invisível entre os jovens, que acaba por dividir toda a cidade.

“É como se houvesse duas opções de vida”, afirma Carina Guedes, estudante de psicologia que veio com o resto da expedição da USP. “Ou o jovem é consciente, quer fazer uma faculdade e participa de atividades na Casa, ou ele é desiludido, sujeito às drogas, ao tráfico e ao marasmo da falta de oportunidades”.

Segundo Carina, Essa divisão que parece boato é resultado imediato das políticas contra drogas da prefeitura e ONGs. Mesmo que não seja uma divisão real, já faz parte do imaginário popular. São muitos os jovens que querem deixar a cidade, assim como os que querem fazer faculdade fora. Ir para São Paulo ou outra capital como Belo Horizonte e Rio de Janeiro, é tão freqüente quanto o desemprego, tão comum quanto a desilusão. Todos tem um filho ou parente, já moraram fora, sempre vão ou gostariam de voltar.

Não apenas o modo de vida da população nova é dividida em dois pedaços maniqueístas e antagônicos. O olhar sobre a cidade, o local onde se mora, ou possui, ou nasceu, é em meio a relações conflituosas. “Aqui era um lixão melhorou muito. Tem o problema da violência, que piorou, as crianças não podem brincar na rua como antes. E o desemprego. Mas melhorou muito. Quase não lembra como era antes”. Assim como afirma dona Isabel, é quase consenso entre os conterrâneos a melhora. Essa esperança com a coalizão governante caminha de mãos dadas com a tristeza de falta de perspectiva endêmica.

Falta emprego, falta faculdade, falta paz, falta uma ponte segura ate a zona rural – que quando chove impossibilita a travessia -, falta transporte gratuito, faltam empresas. A rede de esgotos esta quase acabando, a violência piorou nos últimos anos, mas até que está melhorando, está-se prestando mais atenção ao abuso infantil, está-se construindo um centro de hemograma que será referencia regional. É, falta muito, mas está melhorando. A estudante de fisioterapia, Fernanda Bergamine, surpreendeu-se com a falta de perspectiva aparente de muitos que atendeu, principalmente mulheres, “Quantas delas afirmaram ‘não fazer nada’ no dia a dia, e por fim até cuidar dos filhos se tornou algo aborrecido e evitado”.

E quantos não participam da Festa da Manga, que é o maior evento da cidade, que ano passado trouxe. Pessoas das regiões próximas vem participar dos quatro dias de festejos, que contribui com a economia, fama e turismo da bela cidade. A melhor oportunidade para vestir o merecido título de terra da manga, quando muitos produtos são feitos para a ocasião, de pastel a picolé. Fora essa época, o principal modo de escoação é a vendagem na beira das rodovias. Quando, em dezembro passado, os quatro ônibus vindos desde a USP da Dr. Arnaldo chegaram à cidade com sua gorda bagagem de remédios e títulos, ainda se viam abadás por todos os lados, pavimentados ou não.



Aguardo pelos outros
As famílias que vivem em Bela Vista são chamadas de assentadas, mesmo que os trâmites de concessão das terras há 10 km da pequena cidade mineiro-baiana não estejam finalizados. Há um ano e meio na fazenda comprada pelo Incra, aguardam resoluções em pequenas casas de madeira e lona, divididas geograficamente em dois grupos principais devido à disposição natural do local. São oitenta famílias na parte mais baixa, e mais perto da estrada de acesso à cidade; e doze delas três quilômetros ladeira acima. Pela divisão não ter ocorrido ainda, não podem criar animais, mesmo que já trabalhem nos trechos de roça que lhes pertence.

O trecho que fazíamos rapidamente a bordo de uma van emprestada pela prefeitura, era feito diariamente (e durante considerável parte do dia) por muitos moradores, não só ate os companheiros assentados, mas muitas vezes ate a cidade. Toda vez que alguém fica doente, ou quando precisavam comprar algo. Normalmente, quando não há nenhuma atividade extra como a realizada pelo grupo de alunos do qual éramos parte, o único veículo ate a cidade – ou ate a beira de estrada asfaltada – é o ônibus escolar. Todo dia que não chove muito a ponto de deixar a estrada intransponível, as crianças são levadas até a escola municipal de Pasmado, bairro periférico mais próximo do assentamento.

Mas o ideal seria uma escola dentro do acampamento, pensam os pais – aliás, poucos lá não o eram. E também um veiculo semanal ate a cidade, ou uma ajuda de custo com gasolina para quem tem carro poder levar quem precisa, à disposição de toda a comunidade, sugeriu José Osvaldo, dono do único carro da fazenda, um Pampa. Essas e outras necessidades foram apontadas pelos assentados reunidos, para por em discussão com as alunas da Esalq - cujo objetivo era incentivá-los a se organizarem a fim de alcançarem os objetivos da comunidade.

Assim que os desejos da comunidade eram listados em ordem de prioridade após intensas discussões no salão comunal, o próximo passo era colocar um responsável por organizar companheiros para tomar medidas em relação aos obstáculos que impediam os sonhos de acontecerem. Na ordem de prioridades de necessidades da comunidade, a real posse da terra, suprimentos de água e energia e escola eram os primeiros itens. O galpão multiuso será a primeira coisa a ser construída, primeiro passo para se ter aprendizagem local. Razoavelmente longe das divisões em zonas de controle, jovens e crianças de Bela Vista aguardam a organização dos pais para que tenham melhores condições no acampamento. No futuro galpão poderão se reunir para serem alfabetizados, aprenderem música e quem sabe verem filmes quando a energia chegar. Então verão coisas similares aos jovens da zona urbana. Para alegria dos pais, até que seus filhos percebam que o mundo da TV carioca não é o mesmo que compartilham em um dos fundos do Brasil.