sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Em um dos fundos do Brasil

Relato de Viagem




Origens
Itaobim, Vale do Jequitinhonha. A cidade de vinte mil habitantes, cujo nome tupi quer dizer pedra verde, tem origem indígena e um passado com riqueza de esmeraldas - o que pode explicar a invasão branca. João Pereira, prefeito eleito ano passado, conta que a povoação ocidental de todo o Vale tem origem no fim da Guerra do Paraguai, quando as terras foram dadas em presente aos combatentes.
Não poderiam ser as já inexistentes esmeraldas motivo da visita de pouco mais de duzentas pessoas vindas da Universidade de São Paulo – 1215 km ao sul. Nem, por mais bonito que seja o artesanato local, outra herança indígena segundo alguns governantes. Em meio ao choque cultural, diversas atividades ligadas à saúde foram feitas por lá. O projeto de extensão universitária chamado Bandeira Científica há dez anos realiza expedições similares, cada ano para uma cidade de baixo IDH do Brasil. Os alunos podem, dizem assim, conhecer melhor o país onde trabalharão, além de já durante a graduação (pós ou residência para os médicos) dar o retorno à sociedade, como faculdade pública de que são parte.
Fim dos dias passados juntos - uma dezena deles - cada lado fica ou vai embora com algo, depois de intensa competição para decidir qual grupo foi o mais beneficiado pelo encontro. Os universitário envolvidos suprem demanda considerável de especialidades profissionais que são difíceis e disputadas em cidades de pequeno porte, e longe dos centros profissionalizantes. Por exemplo, oftalmologia, segundo a secretária de saúde Maflávia Guerreiro, os residentes da especialidade adiantam o trabalho equivalente a dois anos de visitas semanas do profissional contratado pela prefeitura, no programa de consórcio de saúde compartilhado por prefeituras vizinhas.

O povo oriundo de São Paulo, em contrapartida, cobra dos atendidos e conhecidos mineiros, o exemplo de brasilidade, a vivência de aprendizagem. Na volta, pensamentos ocupados por montes de nomes, sorrisos, doenças, trejeitos, novos conhecidos cujos contornos já vão ganhando coloração esbranquiçada. E considerável parte de uma cidade continua exatamente onde estava duas semanas antes, na beira da BR-111. E as esculturas que representam mangas gigantes continuam avisando os interessados ou não, transeuntes da rodovia, que ali é a terra da manga.

Retratos



“Meu nome é Maria Rosa, e queria dizer que eu estou na luta”, finalizou nos termos compartilhados pelos outros integrantes do círculo improvisado, com toda a convicção que teria uma senhora mãe na roça, lavradora de pele bem conhecida do sol. Conta que teve o tempo dividido. Nasceu e criou seus filhos na zona rural, por isso, dentre as figuras espalhadas no chão por uma dupla da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, escolheu um recorte de revista que mostrava folhas de uma erva. “Minha mãe e minha avó plantavam espécies medicamentosas. Essa luz batendo nas folhas é o nascer do sol, o que também me lembra da roça, pois levantávamos cedo para trabalhar”. Já Helena, uma das poucas que militavam antes de chegarem na fazenda, escolheu uma figura que representava sua liberdade: “peguei essa foto por que estou livre e sozinha, como a moça dessa foto [modelo em posição de liberdade, na praia]. Aonde eu chego eu faço minha família, essa agora é a minha.

Segunda feira, oito horas da manhã, dezembro, assentamento Bela Vista, o primeiro em Itaobim. A apresentação das senhoras fazia parte de uma dinâmica com figuras, em que cada adulto da comunidade elegia uma ou duas ilustrações e as relacionava com a própria vida, falando de algum sonho. O dela era ter uma horta de remédios. Não conhece muitas ervas, mas tem certeza que com a ajuda de um técnico a comunidade poderá desfrutar de uma, assim como sua mãe e sua avó fizeram. Parecia que todos os presentes tinham relação de gerações com a terra. “Meu pai foi criado na roça, me criou, e agora crio meus filhos. Com essa figura (o recorte mostrava lavradores) queria que meus filhos entendessem que essa é a vida certa para se ter”.

A preocupação com os jovens – faixa etária mais abundante em Itaobim - também é assunto corrente na parte urbana, onde estão 85% da população. “Eles saem do ensino médio e não há emprego, não há faculdade, então não há opção para eles, por isso ficam à toa”, explica dona Isabel, que ainda criança veio para cá. Ela acompanhava os netos Scalety e Igor ao atendimento médico em um dos postos da Bandeira, pois a mãe estava trabalhando. Sua aposentadoria mal dá para as despesas, e é esse um dos motivos por que não estimula sonhos distantes dos netos, “Scalety quer ser policial, mas não tem como, as coisas são difíceis”.

A origem da violência que afeta a vida dos moradores, é sempre apontada pela presença das rodovias que cruzam a cidade – BR-111, 367 -, de forma curiosamente clara para os locais. O que, a princípio, beneficiaria comércio e indústria pela praticidade, também atraiu rotas de tráfico, em conseqüência a violência de disputas de gangues. E a presença de diversas dessas, dividiu a já pequena cidade em zonas de influência e controle, “os jovens envolvidos não tem mobilidade de uma escola pra outra dependendo da localização do bairro, tem tudo a ver com o tráfico”, aponta a secretária adjunta de educação do município, Darling Santos.

A carência local transformou a BR-111, principal acesso à cidade, em ponto de prostituição, agravando ainda mais o quadro, com adição de freqüentes casos de exploração infantil. “Isso tem diminuído por causa dos projetos iniciados”, diz ainda Darling se referindo ao projeto de coalizão – baseado em denúncias anônimas - que une professores da rede pública, o setor social, a equipe do Bolsa Família e o Pair (programa de ações integradas e referenciais de enfrentamento à violência sexual infanto-juvenil). A ambição é que o modelo seja exportado para municípios próximos que sofrem com o mesmo tipo de problema.

A maioria formada pelos menores


Itaobim é uma cidade de jovens. Os problemas enfrentados pelos vinte mil habitantes da chamada terra da manga podem ser superados pelo potencial – atualmente não bem aproveitado – de utilizar essa força guardada para reverter seus futuros. É nisso que acreditam os jovens da classe conscientizada, como os freqüentadores da Casa da Juventude, ONG cujo enorme galpão alimenta todos os dias 600 crianças, além de fornecer cursos, aulas e grupos de todos os assuntos que chegarem ate lá. De dança a cooperativa de lixo reciclável passando por cinema em equipada ilha de edição de vídeo. Parte de um projeto internacional da Igreja Católica, o complexo é localizado em um dos bairros mais carentes da cidade. Lugar também onde é mais evidente a divisão invisível entre os jovens, que acaba por dividir toda a cidade.

“É como se houvesse duas opções de vida”, afirma Carina Guedes, estudante de psicologia que veio com o resto da expedição da USP. “Ou o jovem é consciente, quer fazer uma faculdade e participa de atividades na Casa, ou ele é desiludido, sujeito às drogas, ao tráfico e ao marasmo da falta de oportunidades”.

Segundo Carina, Essa divisão que parece boato é resultado imediato das políticas contra drogas da prefeitura e ONGs. Mesmo que não seja uma divisão real, já faz parte do imaginário popular. São muitos os jovens que querem deixar a cidade, assim como os que querem fazer faculdade fora. Ir para São Paulo ou outra capital como Belo Horizonte e Rio de Janeiro, é tão freqüente quanto o desemprego, tão comum quanto a desilusão. Todos tem um filho ou parente, já moraram fora, sempre vão ou gostariam de voltar.

Não apenas o modo de vida da população nova é dividida em dois pedaços maniqueístas e antagônicos. O olhar sobre a cidade, o local onde se mora, ou possui, ou nasceu, é em meio a relações conflituosas. “Aqui era um lixão melhorou muito. Tem o problema da violência, que piorou, as crianças não podem brincar na rua como antes. E o desemprego. Mas melhorou muito. Quase não lembra como era antes”. Assim como afirma dona Isabel, é quase consenso entre os conterrâneos a melhora. Essa esperança com a coalizão governante caminha de mãos dadas com a tristeza de falta de perspectiva endêmica.

Falta emprego, falta faculdade, falta paz, falta uma ponte segura ate a zona rural – que quando chove impossibilita a travessia -, falta transporte gratuito, faltam empresas. A rede de esgotos esta quase acabando, a violência piorou nos últimos anos, mas até que está melhorando, está-se prestando mais atenção ao abuso infantil, está-se construindo um centro de hemograma que será referencia regional. É, falta muito, mas está melhorando. A estudante de fisioterapia, Fernanda Bergamine, surpreendeu-se com a falta de perspectiva aparente de muitos que atendeu, principalmente mulheres, “Quantas delas afirmaram ‘não fazer nada’ no dia a dia, e por fim até cuidar dos filhos se tornou algo aborrecido e evitado”.

E quantos não participam da Festa da Manga, que é o maior evento da cidade, que ano passado trouxe. Pessoas das regiões próximas vem participar dos quatro dias de festejos, que contribui com a economia, fama e turismo da bela cidade. A melhor oportunidade para vestir o merecido título de terra da manga, quando muitos produtos são feitos para a ocasião, de pastel a picolé. Fora essa época, o principal modo de escoação é a vendagem na beira das rodovias. Quando, em dezembro passado, os quatro ônibus vindos desde a USP da Dr. Arnaldo chegaram à cidade com sua gorda bagagem de remédios e títulos, ainda se viam abadás por todos os lados, pavimentados ou não.



Aguardo pelos outros
As famílias que vivem em Bela Vista são chamadas de assentadas, mesmo que os trâmites de concessão das terras há 10 km da pequena cidade mineiro-baiana não estejam finalizados. Há um ano e meio na fazenda comprada pelo Incra, aguardam resoluções em pequenas casas de madeira e lona, divididas geograficamente em dois grupos principais devido à disposição natural do local. São oitenta famílias na parte mais baixa, e mais perto da estrada de acesso à cidade; e doze delas três quilômetros ladeira acima. Pela divisão não ter ocorrido ainda, não podem criar animais, mesmo que já trabalhem nos trechos de roça que lhes pertence.

O trecho que fazíamos rapidamente a bordo de uma van emprestada pela prefeitura, era feito diariamente (e durante considerável parte do dia) por muitos moradores, não só ate os companheiros assentados, mas muitas vezes ate a cidade. Toda vez que alguém fica doente, ou quando precisavam comprar algo. Normalmente, quando não há nenhuma atividade extra como a realizada pelo grupo de alunos do qual éramos parte, o único veículo ate a cidade – ou ate a beira de estrada asfaltada – é o ônibus escolar. Todo dia que não chove muito a ponto de deixar a estrada intransponível, as crianças são levadas até a escola municipal de Pasmado, bairro periférico mais próximo do assentamento.

Mas o ideal seria uma escola dentro do acampamento, pensam os pais – aliás, poucos lá não o eram. E também um veiculo semanal ate a cidade, ou uma ajuda de custo com gasolina para quem tem carro poder levar quem precisa, à disposição de toda a comunidade, sugeriu José Osvaldo, dono do único carro da fazenda, um Pampa. Essas e outras necessidades foram apontadas pelos assentados reunidos, para por em discussão com as alunas da Esalq - cujo objetivo era incentivá-los a se organizarem a fim de alcançarem os objetivos da comunidade.

Assim que os desejos da comunidade eram listados em ordem de prioridade após intensas discussões no salão comunal, o próximo passo era colocar um responsável por organizar companheiros para tomar medidas em relação aos obstáculos que impediam os sonhos de acontecerem. Na ordem de prioridades de necessidades da comunidade, a real posse da terra, suprimentos de água e energia e escola eram os primeiros itens. O galpão multiuso será a primeira coisa a ser construída, primeiro passo para se ter aprendizagem local. Razoavelmente longe das divisões em zonas de controle, jovens e crianças de Bela Vista aguardam a organização dos pais para que tenham melhores condições no acampamento. No futuro galpão poderão se reunir para serem alfabetizados, aprenderem música e quem sabe verem filmes quando a energia chegar. Então verão coisas similares aos jovens da zona urbana. Para alegria dos pais, até que seus filhos percebam que o mundo da TV carioca não é o mesmo que compartilham em um dos fundos do Brasil.